domingo, 1 de fevereiro de 2015

Mitologia - O NASCIMENTO DE VÊNUS

A véspera do nascimento de Vênus fora um dia violento.
O firmamento, tingindo-se subitamente de um vermelho vítreo, enchera de espanto toda a Criação.
Saturno, munido de sua foice, enfrentara o próprio pai, o Céu, num embate cruel pelo poder do Universo.
Com um golpe certeiro, o jovem deus arrancara fora a genitália do pai, tornando-se o novo soberano do mundo. Um urro colossal varrera os céus, como o estrondo
tremendo de um infinito trovão, quando o Céu fora atingido.
O fecundo órgão do deus deposto, caindo do alto, mergulhara nas águas profundas, próximo à ilha de Chipre.
Assim, o Céu, depois de haver fecundado incessantemente a Terra dando origem à estirpe dos deuses olímpicos, fecundava agora, ainda que de maneira excêntrica e inesperada, o próprio Mar.
Durante toda a noite o mar revolveu-se violentamente.
A espuma do mar, unida ao sangue do deus caído, subia ao alto em grandes ondas, como se lançasse ao vento os seus leves e espumosos véus.
Mas quando a Noite recolheu finalmente o seu grande manto estrelado, dando lugar à Aurora, que já tingia o firmamento com seus dedos cor-de-rosa, percebeu-se que as águas daquele mar pareciam agora outras, completamente diferentes.
O borbulhar imenso das ondas anunciava que algo estava prestes a surgir.
Das margens da ilha de Chipre, algumas ninfas, reunidas, apontavam, temerosas, para um
trecho agitado do mar:
— O mar está prestes a parir algo! — disse uma delas.
— Será algum monstro pavoroso? — disse outra, temerosa.
Mas nem bem o sol lançara sobre a patina azulada do mar os seus primeiros raios, viu-se a
espuma, que parecia subir das profundezas, cessar de borbulhar. Um grande silêncio pairou sobre
tudo.
 Sintam este perfume delicioso! — disse uma das ninfas.
As outras, erguendo-se nas pontas dos pés, aspiraram a brisa fresca e olorosa que vinha do alto-mar.
Nunca as flores daquela ilha haviam produzido um aroma tão penetrante e, ao mesmo tempo, tão discreto; tão doce e, ao mesmo tempo, tão provocantemente acre; tão natural e, ao mesmo tempo, tão sofisticado.
De repente, do espelho sereno das águas nunca, até então, o mar tivera aquela lisura perfeita de um grande lago adormecido começou a elevar-se o corpo de alguém.
 Vejam, é a cabeça de uma mulher!, gritou uma das ninfas.
Sim, era uma bela cabeça a mais bela cabeça feminina que a natureza pudera criar desde que o mundo abandonara a noite trevosa do Caos.
Um rosto perfeito: os traços eram arredondados onde a beleza exigia que se arredondassem, aquilinos onde a audácia pedia que se afilassem e simétricos onde a harmonia exigia que se emparelhassem.
O restante do corpo foi surgindo aos poucos: os ombros lisos e simétricos, os seios perfeitos e idênticos, tão iguais que nem o mais consumado artista saberia dizer qual era o modelo e qual a sua réplica perfeita.
Sua cintura, com duas curvas perfeitas e fechadas, parecia
talhada para realçar o umbigo perfeito, o qual acomodava delicadamente, como um encantador pingente, uma minúscula e faiscante pérola.
E, logo abaixo, um véu triangular loiro e aveludado véu, tecido com os mais delicados e dourados fios, agitava-se delicadamente, embatido pela brisa da manhã.
Nenhum humano podia saber ainda o que ele ocultava — seu segredo mais cobiçado, que somente a poucos seria revelado.
Algumas aves marinhas surgiram, arrastando uma grande concha, a qual depositaram ao lado da deusa sim, era uma deusa, para que ela, como em um trono, se assentasse.
Um marulhar de peixes saltitantes a cercava, enquanto golfinhos puxavam seu elegante carro aquático
até as areias da praia cipriota.
Nem bem a deusa colocara os pés na ilha, e toda ela verdejou e coloriu-se como nunca antes havia sido.
Por onde ela passava, brotavam do próprio solo maços aromáticos de flores multicores, os pássaros todos entoavam um concerto de vozes perfeitamente harmoniosas e os animais quedavam-se sobre a relva com as cabeças pendidas, para receber o afago daquela mão alva e sedosa.
Quem é você, mulher mais que perfeita? perguntou-lhe, finalmente, a ninfa que primeiro recuperara o dom da fala.
Sou aquela nascida da espuma do mar e do sêmen divino respondeu a deusa, com uma voz cristalina e docemente áspera, envolta num hálito que superava em delícia ao de todas as flores que seus pés haviam feito brotar.
No mesmo dia, a extraordinária notícia do nascimento de criatura tão bela chegou ao Olimpo, e os deuses ordenaram que as Horas e as Graças a fossem recepcionar.
Ainda mais enfeitada pelas mãos destas caprichosas divindades, apresentou-se a nova deusa diante de seus
pares no grandioso salão do Olimpo, sendo imediatamente acolhida e festejada pelos deuses.
Mas quando todos ainda se perguntavam quem seria, afinal, aquela criatura encantadora, um descuido seria, mesmo?  pôs fim a todas as indagações.
Pois o véu que a envolvia, descendo-lhe até os pés, revelara o que nenhum dos embelezamentos artificiais pudera antes realçar: a sua infinita beleza original.
É Vênus, sim, a mais bela das deusas! disse o coro unânime das vozes.

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